sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Proposta de redação para o art. 967 do Novo Código de Processo Civil

Como é de conhecimento da comunidade jurídica, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 166, tratando do Novo Código de Processo Civil. O texto do anteprojeto de lei, elaborado pela Comissão de Juristas instituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 379, de 2009, propõe a seguinte redação para o art. 967 do Novo Código de Processo Civil:

Art. 967. Os autos poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado, findo o prazo de cinco anos, contado da data do arquivamento, publicando-se previamente no órgão oficial e em jornal local, onde houver, aviso aos interessados, com o prazo de um mês.
§ 1º As partes e os interessados podem requerer, às suas expensas, o desentranhamento dos documentos que juntaram aos autos ou cópia total ou parcial do feito.
§ 2º Se, a juízo da autoridade competente, houver nos autos documentos de valor histórico, serão estes recolhidos ao arquivo público.

Essa redação muito se assemelha à do art. 1.215 do atual Código de Processo Civil, onde se dispõe:

Art. 1.215. Os autos poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado, findo o prazo de 5 (cinco) anos, contado da data do arquivamento, publicando-se previamente no órgão oficial e em jornal local, onde houver, aviso aos interessados, com o prazo de 30 (trinta) dias.
§ 1o É lícito, porém, às partes e interessados requerer, às suas expensas, o desentranhamento dos documentos que juntaram aos autos, ou a microfilmagem total ou parcial do feito.
§ 2o Se, a juízo da autoridade competente, houver, nos autos, documentos de valor histórico, serão eles recolhidos ao Arquivo Público.

Ocorre que esse dispositivo da lei recebeu muitas críticas antes mesmo de sua entrada em vigor. Segundo consta do voto da Ministra Ellen Gracie na ADIn 1919 SP, o Conselho Federal de Cultura, em ofício assinado Professor Sylvio Meira, manifestou-se nos seguintes termos:
O valor histórico do documento só a posteridade dirá. Não podemos sacar no futuro, em matéria de valorização de documentos. Acresce que não apenas a História, conforme já salientei, se liga aos processos arquivados. Numa ação judicial de nossos dias poderão os vindouros investigar aspectos financeiros, econômicos, artísticos e outros, que se espraiam por todos os domínios da curiosidade humana.
(…)
O que procura o projeto em debate é, no entanto, um incêndio voluntário, de todos os processos, decorridos cinco anos. Entendo que deve ser sugerida uma substituição do artigo, por outro, em que se diga: 'É vedada a destruição, por qualquer forma, de autos arquivados. Parágrafo único: O Poder Público, através dos órgãos competentes, organizará museus e arquivos judiciais, para preservação de todos o papéis e documentos que serão recolhidos depois de decorridos dez anos de encerramento do processo'.

Tendo entrado em vigor, logo em seguida o dispositivo teve sua eficácia suspensa por ato do Poder Executivo, de constitucionalidade questionável, sendo este depois ra(e)tificado pela Lei nº 6.246, de 1975. O assunto foi objeto da clássica manifestação do Ministro Aliomar Baleeiro na Folha de São Paulo de 25.06.76:

Graças a Deus, por escandaloso que pareça, foi louvável uma bruta ilegalidade cometida pelo Sr. Geisel quando, em 16.06.75, por mero ato do Executivo suspendeu, sem cerimônia, um dispositivo de lei do congresso, o artigo 1215 do novo Código de Processo, que permitia a qualquer escrivão tocar fogo, destruir mecanicamente ou por outro meio adequado, os autos judiciais depois de cinco anos de arquivamento. O ato do Presidente, crime de responsabilidade, poderia metê-lo num processo de 'impeachment', mas salvou o Brasil de imensos prejuízos nascidos de uma tolice legislativa, oriunda de projeto do Executivo que a inadvertência do Congresso converteu em lei. O pecado formal e benemérito já está corrigido, porque a Lei 6.246, de 07.10.75, suspendeu a vigência daquele asnático artigo 1.215 do CPC, sanando a falta de competência do Chefe da Nação para a providência drástica mas oportuna e inteligente.
Sei bem que a construção de um edifício a prova de fogo para o arquivo custa infinitamente mais que a matança dos nefastos e tenazes cupins. Mas a Nação não está tão pobre que não possa empregar uns poucos milhões nesta obra de investimento nacional, tanto mais quando gasta centenas de milhões, cada ano, em arapucas para repartições de terceira ordem em Brasília e por aí afora.
O edifício para um arquivo nacional não precisa ser edificado em mármore com frontaria de vidro fumê, móveis anatômicos etc. Etc. Seus visitantes são austeros investigadores que aceitam até o piso de cimento e não se fatigam de ir a locais em rua de terrenos menos valorizados.

A referida Lei nº 6.246, de 07.10.75, dispõe: "Art 1º Fica suspensa a vigência do artigo 1.215 do Código de Processo Civil até que lei especial discipline a matéria nele contida".
Como se vê, a suspensão da eficácia do artigo 1.215 do atual CPC se deve à discussão causada por sua redação, que não estabeleceu critérios seguros para a eliminação de autos. E, ao que parece, o anteprojeto do novo código reascendeu a polêmica.
Ao se acompanhar a tramitação do Projeto de Lei pelo endereço eletrônico do Senado Federal (www.senado.gov.br) é possível verificar que o Excelentíssimo Senhor Senador Eduardo Suplicy apresentou emenda ao projeto para ser alterada a redação do art. 967 e inclusão do art. 971, nos seguintes termos:

"Art. 967. Os processos judiciais são documentos públicos, cabendo ao Poder Judiciário, como integrante do seu dever de prestar jurisdição, assegurar sua guarda, autenticidade, preservação e amplo acesso.
§1º Os processos judiciais e os documentos produzidos no âmbito do Poder Judiciário devem ser preservados no suporte original em que constituídos, permitida a substituição por microfilmes e por outros meios introduzidos pelo processo de inovação tecnológica, desde que garantam conservação no tempo, integridade e autenticidade documentais.
§2º A avaliação do modo de preservá-los deve ser feita por comissão instituída pelas Administrações dos Tribunais, integrada por profissionais habilitados segundo o Conselho Nacional de Arquivos, CONARQ, respeitada a Tabela de Temporalidade que atente para as especificidades das demandas e sua classificação, visando ao acesso à prova e ao cumprimento do poder-dever de prestar jurisdição;
§3º O procedimento de substituição de que trata o parágrafo anterior e da publicação de editais circunstanciados, com indicação do nome das partes, número do processo e da data do ajuizamento;
§4º Publicados os editais, deverá ser aberto prazo de trinta dias aos interessados para que, independentemente do suporte adotado, possam requerer desentranhamento dos originais que tenham juntado aos autos, mediante certidão;
§5º Os processos de guarda permanente, ainda que adotada a substituição de suporte de que trata o parágrafo terceiro deste dispositivo, serão preservados no meio em que produzidos.
...................................................................
Art. 971. Revoga-se a Lei nº 7.627, de 10 de novembro de 1987." (NR)

Feitas essas considerações, entende-se que, se por um lado não se pode estabelecer uma temporalidade de 5 (cinco) anos indistintamente para eliminação de todo tipo de processo judicial findo; por outro, não se pode manter todos os processos em arquivo por tempo indeterminado.
Persiste no âmbito da Administração Pública a prática de preservar tudo, com receio de que informações importantes sejam descartadas. Contudo, deve-se notar que a guarda sem nenhum critério de todo tipo de documento também é extremamente prejudicial à Administração. Essa concepção é responsável pelo caos vivenciado em grande parte dos arquivos judiciários do país.
Nesse sentido, faz-se oportuno observar a seguinte passagem da obra de FERNANDO TEIXEIRA DA SILVA:

"O pesadelo da Biblioteca de Alexandria paira como uma ameaça: o sonho colossal de tudo reter (a imagem e modelo do Universo, na versão da biblioteca infinita e imaginária de Borges) redundaria na perda completa de seu acervo"[1].

E o estudioso conclui esse pensamento, citando SORDI, afirmando que "quem guarda tudo não encontra nada".
Há de se observar que atualmente o Conselho Nacional de Justiça vem realizando estudos para se estabelecer uma tabela de temporalidade de processos para o Poder Judiciário de todo o país.
Já sugerimos ao Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ a intervenção na tramitação do Projeto de Lei do Senado nº 166/2010 para sugerir a alteração do art. 967 do texto do anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, no sentido de se autorizar a eliminação de autos judiciais findos, devendo a matéria ser regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça.
Em audiência pública realizada no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul fizemos a mesma sugestão à Comissão de Reforma do Código de Processo Civil.
Isso porque se entende não caber à lei, norma geral e abstrata, definir os critérios de gestão documental dos autos judiciais findos. Ao código cabe traçar as linhas gerais. Aos arquivistas do Poder Judiciário cabe analisar detalhadamente a importância de cada espécie documental e definir a melhor forma de se preservar as informações, bem como definir por quanto tempo os materiais devem ser preservados.
Sendo o arquivamento de autos de processos findos uma atividade administrativa, e não propriamente judicial, dos órgãos da Justiça, entende-se que as regras podem ser estabelecidas por meio do exercício do poder regulamentar da autoridade competente.
Eis as razões pelas quais se pensa que a nova lei deva atribuir ao CNJ, na condição de órgão de controle da atuação administrativa do Poder Judiciário (art. 103-B, §4º, da Constituição Federal), a responsabilidade de regulamentar a eliminação de autos findos por meio de resolução.
Assim, sugeriu-se a seguinte redação para o texto:
Art. 967. Após o trânsito em julgado, os autos poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado, segundo critérios a serem estabelecidos em resolução do Conselho Nacional de Justiça, observando-se, em todo caso, o interesse público, a publicidade e a legalidade na realização dos procedimentos.

Referida redação garantiria a segurança necessária para tratamento da questão e não inviabilizaria a eliminação dos autos, evitando o congestionamento dos espaços físicos dos prédios do Poder Judiciário no país.






[1]          SILVA, Fernando Teixeira da. Nem crematório nem museu de curiosidades: por que preservar os documentos da Justiça do Trabalho. In: Memória e Preservação de documentos: direitos do cidadão, São Paulo: Ltr, 2007. 31-51 p.

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